Fora da zona de conforto

Antes do Mundo Acabar é o disco de samba da Zélia Duncan. A produção de Bia Paes Leme aglutinou poucos músicos em volta da cantora. O arranjador Marco Pereira é figura garantida ao violão. O percussionista Thiago da Serrinha está presente em cada uma das faixas. Webster Santos (violão, cavaquinho, viola, violão de aço) e Luís Barcelos (bandolim, cavaquinho) ora estão juntos, ora revezam posições, dependendo do arranjo.

Rogério Santos (violão de 7 cordas) e Gabriel Grossi (gaita) deixaram o projeto mais colorido. A capa e a direção de arte de Simone Mina, com fotos de Roberto Setton, ficaram batutas. Zélia descalça, com um vestido vermelho, aparece deitada num piso de madeira, onde foram espalhados instrumentos acústicos e utensílios retrô (uma vitrola, um rádio de pilha, um gravador de fitas K-7).

Mais do que o samba, na exata acepção do termo (os difamadores estão salivando), Antes do Mundo Acabar é o jeito criativo que Zélia encontrou de se aproximar do samba. Sem deixar de lado o vocabulário desenvolvido em 34 anos de carreira. Uma proposta amadurecida com muito cuidado. Afinal, seria entrar em terreno frequentado por uma constelação de notáveis. Contudo, Zélia nunca se furtou em arriscar os passos.

Entre as novidades, ela se propôs a compor com Xande de Pilares e Arlindo Cruz, representantes abalizados da contemporaneidade do samba. Em outra ponta, regravou Riachão, Dona Ivone Lara (com Délcio Carvalho), Paulinho da Viola e Moacyr Luz (com Sereno), reverenciando a tradição. Fred Camacho, Leandro Fab e Pretinho da Serrinha ofertaram Por Água Abaixo a ela.

Na intenção de promover a originalidade de seu olhar, Zélia emendou parcerias com Ana Costa, Zeca Baleiro, Bia Paes Leme e Pedro Luís. Resulta daí uma combinação artesanal, suave e carinhosa, que tangencia a crítica social (No Meu País) para apostar na esperança, na alegria e nos bons sentimentos. O importante é que ela evita, com maestria, os clichês do batuque, disponíveis para quem quiser fazer pose de malandro.

Não é fácil regravar Tom Zé. O tropicalista mais inventivo é um sapiente gerador de canções tresloucadas, na forma e no conteúdo, para o bem e para a insanidade enfadonha. A simples tarefa de apanhar um bocado delas, numa plantação de tantas influências, pode levar qualquer um a ficar com dor de cabeça.

Tom Zé continua ativo, em idade avançada, com a mente aguçada. A análise ferina diante dos que remexem no seu baú. Por educado que seja, ele pode torcer o nariz em particular. O que fazer para contentar um mestre tão rigoroso e iconoclasta? Bom, Regina Machado convidou Dante Ozzetti para dar um rumo nas coisas.

Regina tem a vantagem de ter sido vocalista na banda do homenageado. Ela conviveu com o temperamento do compositor que, graças a uma formação erudita, dá-se ao luxo de revolver a partitura popular. Dante, que não é tropicalista, conhece os fundamentos da vanguarda paulistana, que chegou mais tarde com similar espírito indômito.

A conjunção estava pronta para seguir os ensinamentos de Tom Zé, em (“eu tô te explicando pra te confundir/ tô te confundindo pra te esclarecer”). Mas o nome do CD veio de Multiplicar-se Única, que diz que “toda canção quer se multiplicar na multidão”. Apesar de surgir na capa e no encarte, nas fotos de Gal Oppido, o dono da bola não entrou em estúdio.

A bela voz de Regina é um excelente começo. A decisão de concentrar o repertório em nove faixas deve ser comemorada. Os climas e ambientes que Dante providenciou não deixam a audição escorregar para a monotonia. Fechar o disco, por exemplo, com Solidão (“que poeira leve”) e ter Regina acompanhada pelo fagote de Ronaldo Pacheco é um achado precioso.

A irreverência de Tom Zé foi preservada nas teses de Complexo de Épico e João nos Tribunais. Há lirismo de sobra em Lua-Gira-Sol. A capacidade do autor surpreender o lugar comum encontra espaço em O Amor É Velho-Menina eMenina Jesus. Augusta, Angélica e Consolação beiram a polifonia. Generosos, Regina e Dante sopraram vida nova nas canções de Tom Zé.

Este texto também foi publicado na Ludovica.

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